Moradores das favelas do Rio se posicionam contra intervenção militar

A intervenção militar no estado Rio de Janeiro foi aprovada na Câmara Federal na última terça-feira (20), pela maioria dos parlamentares, com a justificativa de conter a crise da segurança pública no estado. No entanto, para moradores das favelas e áreas de conflito da capital, que tiveram experiências anteriores com operações das forças armadas, a medida significa violação de direitos para os mais pobres e está longe de ser a solução para a crise.

Para a moradora da Maré, Gizele Martins, a presença do exército oprime e modifica o cotidiano dos moradores das favelas. “A gente sabe que quando tem uma intervenção como essa, as interrupções das nossas vidas passam a ser diárias, perdemos o direito de ir e vir. E a violência continua. Em 2016, tivemos pessoas assassinadas, nossas casas invadidas e até casos de estupros na Maré. Vamos sofrer tudo de novo”, afirma. 

Como relembra Gizele, as forças armadas participaram de diversas operações militares no Rio outras vezes, como na ocupação do Complexo do Alemão e da Maré, em 2007, 2010 e 2016, e também durante a Copa e as Olimpíadas. Mas essa é a primeira intervenção militar decretada pelo governo federal desde 1988. Com ela, até dezembro deste ano, o general do exército Walter Souza Braga Netto terá o comando da Secretaria de Segurança, Polícias Civil e Militar, Corpo de Bombeiros e do sistema carcerário no estado do Rio.

Tainã de Medeiros, morador do Complexo do Alemão, conta que as operações anteriores com a presença do exército trouxeram mais violência e insegurança para os moradores das áreas de conflito.  “No Alemão, enquanto o exército estava lá houve muito silenciamento, tapa na cara, casas invadidas e tortura. Isso é o que o estado nos coloca em troca dessa suposta paz. As trocas de tiros acabam, mas a população sofre e o crime organizado continua atuando”, explica. 

Tainã conta que uma das maiores preocupações dos moradores das favelas com a intervenção é a possível autorização de mandados de busca e apreensão coletivos.  De acordo com o ministro da Defesa, Raul Jungmann, as operações vão funcionar com mandados coletivos que vão incorporar ruas ou um bairros ao invés de uma casa.

Para Filipe dos Anjos, secretário geral da Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (Faferj), a proposta dos mandados coletivos é mais uma medida que fere os direitos dos moradores das favelas.

“Nós questionamos a eficácia das intervenções militares. As operações com exército nunca trouxeram benefícios nem para as favelas, nem para o Rio e nem para o país. Na Maré, o governo gastou R$ 1,7 milhão por dia e envolveu 2,5 mil militares, em 2016, e a comunidade encontra-se em disputa de facções. Os moradores continuam acuados lá dentro”, afirma.

A Faferj sediou nesta semana um debate sobre a intervenção militar com moradores das favelas do Rio. A ideia é fortalecer uma rede de moradores para questionar e resistir à repressão militar, além de reivindicar que o Estado esteja presente nesses espaços através de políticas públicas de educação, saúde e habitação.

Falência da política

Para o sociólogo Sérgio Adorno, a intervenção no Rio de Janeiro é um sinal de “falência da política”, que ocorre, segundo sua análise, quando um governante abdica de governar. Sem estar convencido da necessidade da medida, ainda que prevista constitucionalmente, ele observa que outros estados “começaram a entrar na fila” para pedir tropas.

Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da instituição, Adorno participou do programa Entre Vistas, da TVT, comandado pelo jornalista Juca Kfouri, em edição que foi ao ar na última terça-feira (20), gravado no Café do Sindicato dos Bancários, na região central de São Paulo. Faziam parte da bancada de entrevistadores a advogada Paula Nunes, ativista do movimento negro, e a presidenta do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Estado de São Paulo (Condepe), Maria Nazareth Cupertino.

Paula expõe preocupação da população negra, com experiência negativa, em geral, na sua relação com a polícia, ainda que haja uma “ânsia gigantesca” por segurança pública. Mas os moradores não se sentem de fato protegidos, observa. “Pessoalmente, não estou convencido de que esta é a medida adequada. O Exército é treinado para combater exércitos. Numa guerra você tem regras, estratégias”, diz Adorno, questionando como as tropas poderão entrar em bairros, com grandes concentrações populacionais e uma maioria de  pessoas “como a gente”. E conclui: “Um dos princípios fundamentais da democracia, a liberdade, não está garantido para a maioria da população”.

Uma política de segurança, acrescenta, tem de “libertar” e proteger a população, para que todos tenham direito ao trabalho e a construir uma vida digna. OU, em outras palavras, ter “os mesmos direitos que, cidadãos de classe média, temos”. Ele argumenta ainda que o mundo inteiro está revendo sua política sobre drogas. A “guerra às drogas”, diz Adorno, é ineficiente e produz mortes, e o Brasil tem uma atraso de décadas, com uma estratégia limitada a cercar territórios onde moram trabalhadores de baixa renda e aumentar o encarceramento em presídios onde os próprios presos assumem o controle. “É um ciclo perverso”, diz. 

Temer e a corrupção

Juca observa que, em última análise, a intervenção é contra a corrupção, contra o crime que se alimenta dessa corrupção. Mas pergunta: como um oficial do Exército recebe uma ordem de um presidente da República “sobre quem há gravações” e que, ainda assim, fala em combater a corrupção?

“Eu diria que este país está mais para Fellini (o cineasta italiano Federico Fellini) do que para Verdi (o compositor de ópera Giuseppe Verdi, também italiano), está menos para o lado heroico do que para o lado bizarro da história”, responde Adorno. Para ele, uma operação “tecnicamente perfeita” precisa cortar os vínculos entre o crime organizado e o poder público. “E, sobretudo, fazer uma coisa que o mundo inteiro sabe, asfixiar o fluxo financeiro do tráfico. Isso é a regra fundamental”, ressalta o sociólogo.

Maria Nazareth quer saber se os pobres são os “inimigos”, do ponto de vista do atual governo. Mesmo, como diz, “cauteloso com as qualificações”, Adorno afirma que este é um governo que não conversa com o cidadão, como nos casos das “reformas” da Previdência e trabalhista. “É um  governo que vem se caracterizando por uma forte ruptura na relação entre governantes e governados”, diz. 

O Executivo pode também estar desviando a atenção do fracasso na questão da Previdência. Adorno diz que governos anteriores (FHC, Lula) chamaram a universidade, pesquisadores, para elaborar planos “que eu diria bons” na área da segurança. “Este governo não conversa, não quer conversar, cada vez mais vai aprofundando o fosso.”

A partir do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, o país entrou em um “estado vulnerável, de excepcionalidade, onde tudo é possível”, diz Maria Nazareth. Ela cita o congelamento dos gatos sociais e, depois do Rio, afirma temer pelo país todo. Em São Paulo, o uso da força em vez da inteligência e uma Polícia Civil sucateada. Um Estado que “desprotege”, avalia. 

Segurança é tema social

“Infelizmente, a democracia não logrou tratar a segurança como tema social, continuou sendo caso de polícia”, observa Adorno, apontando necessidade de “reforçar laços com os cidadãos”, protegendo desde o nascimento. “O grande problema é que não se conseguiu construir para a opinião pública a ideia é de que temos pensar segurança de uma maneira inovadora: papel da escola, papel da vizinhança, oportunidade de trabalho para adolescentes. No brasil, essa imaginação não contaminou a nossa classe política, os nossos governantes e sobretudo os nossos planejadores, que continuam contabilizando política social como custo.”

Mesmo parte da esquerda brasileira, durante muito tempo, teve dificuldade para lidar com o tema, acrescenta o sociólogo, por identificar segurança com repressão e, consequentemente, ditadura. “Temos de lidar com essa questão no interior de uma política de direitos humanos. Força letal é o último recurso.”

Juca pergunta se não é um equívoco pôr nas ruas gente treinada para a guerra, que olha o cidadão como um inimigo. Adorno concorda. “Vários setores do exército tem se manifestado de maneira discreta contra”, diz, observando que isso aconteceu também no México, em ações contra o tráfico, e resultou em desmoralização do Exército e envolvimento com o comércio do crime. Na guerra de jovens soldados contra criminosos experientes, os dois veem risco, inclusive, de cooptação.

“Eles (Exército) entram numa lógica de enfrentamento. matar. Eles têm de tirar o inimigo da frente. E nós sabemos que várias das lideranças do tráfico são jovens que foram socializados nesse mundo, que sabem se movimentar. Esses que estão na liderança sabem lidar com armas, sistemas de telecomunicações, conhecem o terreno”, diz Adorno, para quem, como em outras intervenções, haverá um certo “período de calmaria”, enquanto as tropas começam a se movimentar. “O cenário é grave  porque você está lidando com população civil. As guerras do século 19 eram entre exércitos, a população não era alvo. A Primeira Guerra Mundial transforma a população em alvo, vários lugarejos são dizimados.” Agora, acrescenta, “vai se construindo uma lógica que o inimigo é difuso, que o inimigo se esconde”.

Abolição inconclusa

Juca pergunta se a Polícia Militar ainda pode ser considerada uma herança da ditadura. “Claro que há elementos estruturais que têm muito essa herança”, responde Adorno. “A PM ainda continua formando seus recrutas numa lógica de enfrentamento, de confronto”, o que mostra traços de regimes autoritários. Mas ele nota mudanças. “Trinta anos atrás,  não sentávamos com policiais à mesa para discutir. Houve uma mudança geracional, muitos militares foram se formando,vários deles formados na minha universidade, no curso de Ciências Sociais, com doutorado em Ciência Politica, Sociologia, eles têm um discurso de direitos humanos com muita clareza. Mas a democracia ainda não conseguiu resolver com os obstáculos trazidos pelo corporativismo.”

Com predominância de vítimas negras, entre presos e mortos pela polícia, Paula questiona se não houve uma “abolição completa” no Brasil. “Nesse sentido, eu acho que não está concluída”, diz Adorno. “Brancos e negros não têm a mesma liberdade de circular pela cidade”, acrescentando, apontando o alto índice de jovens negros vítimas de homicídio. “Isso não é ocasional, é uma tendência, significa uma certa intencionalidade.”

É preciso combater o racismo não apenas nas instituições, mas na sociedade, defende o sociólogo. “Porque muitos cidadãos ficam quietos, não se indignam. Um jovem negro da periferia morre, qual é a atitude? Não me diz respeito. Do ponto de vista do imaginário coletivo, o direito à vida não é igual a todos.” Ele lembra que na faixa de 15 a 29 anos a taxa de mortes violentas é quase 10 vezes maior. “Essa consciência não tocou as pessoas.”

O professor insiste na necessidade de um amplo esclarecimento na sociedade sobre a política de drogas. “Esse assunto tem de entrar na pauta.” Inclusive a sempre polêmica questão da liberalização. Para alguns tipos de drogas, já se mostrou que “é possível controlar os efeitos de uma maneira razoável”.

A última questão é sobre a defesa que alguns fazem, inclusive em meios de comunicação, de que citar os nomes das organizações criminosas colabora para que elas crescem. Adorno discorda. “Todos sabem o que é o PCC. É tapar o sol com a peneira. Acho que a gente não pode viver de mentira, tem de fazer o jogo da verdade.”

O Entre Vistas vai ao ar todas as terças-feiras, às 21h. Pode ser visto no Youtube (www.youtube.com/redetvt) e na página da TVT no Facebook.

Confira aqui o primeiro bloco da entrevista.

Confira aqui o segundo bloco.

Confira aqui o terceiro e último bloco.

[Com informações do Brasil de Fato e da Rede Brasil Atual | Foto Leo Correa/AP]