Uma análise da reforma trabalhista sob o impacto no neoliberalismo com Andréia Galvão


Andréia Galvão é graduada em Ciências Sociais, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde também realizou o mestrado em Ciência Política, e o doutorado em Ciências Sociais. Atualmente, é professora da Unicamp. Além da obra a qual trata nesta entrevista, Andréia organizou os livros Marxismo e socialismo no século XXI (Campinas/São Paulo: IFCH/Xamã, 2005) e Marxismo, capitalismo, socialismo (Campinas: Cemarx/Xamã, 2008).

“Se o governo FHC defendia a necessidade de haver menos regras legais e mais regras negociadas, alegando que a negociação possibilita adequar as regras à situação de mercado e mudá-las mais agilmente, o governo Lula propõe a diferenciação das normas legais para determinados público-alvos e/ou segundo as condições locais/setoriais. Assim, o governo busca alcançar os mesmos objetivos, mas por outros meios, que provoquem menor reação.” Essa é a opinião da professora da Unicamp Andréia Galvão.

Ela concedeu a entrevista a seguir por e-mail à IHU On-Line para falar do tema que aborda em seu mais recente livro Neoliberalismo e reforma trabalhista no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 2007).Andréia fala sobre a reforma trabalhista executada durante os governos Collor e FHC e relaciona com a forma com que o governo Lula tratou esta questão. Para ela, “no início do primeiro mandato de Lula, esperava-se que o governo reverteria o processo de flexibilização de direitos. No entanto, o governo Lula tem mantido a flexibilização na esfera trabalhista, ainda que em ritmo menor do que o verificado sob FHC”.

A reforma executada entre 1990 e 2002 alterou a legislação para flexibilizar os direitos dos trabalhadores, mas não promoveu mudanças na organização sindical. Você estudou a reforma trabalhista implementada entre os governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, mas gostaríamos de saber a sua opinião sobre como o governo Lula trabalhou essa questão da legislação trabalhista.

No início do primeiro mandato de Lula, esperava-se que o governo reverteria o processo de flexibilização de direitos. No entanto, o governo Lula tem mantido a flexibilização na esfera trabalhista, ainda que em ritmo menor do que o verificado sob FHC. Trata-se de uma reforma pontual e silenciosa, porque não é discutida com a sociedade, a despeito da criação de fóruns tripartites supostamente dedicados a essa tarefa, como o Fórum Nacional do Trabalho e o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. O governo Lula iniciou as discussões no Fórum Nacional do Trabalho pela reforma sindical, alegando ser necessário primeiro fortalecer os sindicatos para, depois, negociar a reforma trabalhista. Mas, ao mesmo tempo, o governo implementou algumas medidas flexibilizantes, sem qualquer debate. Posso dar dois exemplos: a contratação de prestadores de serviços na condição de empresas constituídas por uma única pessoa (a chamada “pessoa jurídica”) legalizou uma forma de burlar os direitos trabalhistas, pois essa modalidade de contratação possibilita a dissimulação da existência de vínculo empregatício.

A lei do Super Simples, que cria condições para flexibilizar o pagamento de alguns direitos trabalhistas no caso de micro e pequenas empresas, caminha no mesmo sentido. Além disso, o governo tem defendido a diferenciação de direitos para determinados públicos-alvo: trabalhadores de micro e pequenas empresas, jovens, ou trabalhadores do setor informal, a pretexto de aumentar o nível de emprego e de estimular a formalização do mercado de trabalho. Lula tem dito que não quer tirar direito dos trabalhadores, apenas reconhece que esses trabalhadores já são diferentes. Então, a lógica do governo é que é melhor ter algum direito, mesmo que reduzido, do que não ter direito algum.

Qual foi o papel dos agentes sociais nessa reforma?

Pode-se identificar uma intensa pressão patronal: organizações como a Fiesp e a CNI tiveram um papel de destaque no processo de implantação da reforma, subsidiando os diferentes governos com estudos que apontam a necessidade de “modernização” da CLT e apresentando reiteradamente suas reivindicações aos governos de turno. Essa pressão é claramente interessada e faz todo sentido do ponto de vista patronal, já que a redução dos direitos trabalhistas resulta em ganhos não apenas econômicos, mas também político-ideológicos, pois enfraquece a capacidade de resistência do trabalhador e de suas organizações sindicais, que têm dificuldades de se contrapor à lógica do capital. Mas uma parcela do movimento sindical, iludida com a promessa de que a flexibilização aumentaria o nível de emprego, também contribuiu para a reforma: o banco de horas foi fruto de uma iniciativa do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, filiado à CUT, e a ampliação do contrato por tempo determinado foi inspirada num acordo negociado pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, filiado à Força Sindical. É claro que também houve resistências a esse processo, inclusive por parte de setores da CUT durante o governo FHC, o que evitou uma flexibilização mais profunda, como a aprovação da prevalência do negociado sobre o legislado, mas essa resistência se enfraquece no governo Lula.

E qual é a sua opinião sobre este reforma?

Foi claramente negativa, tanto do ponto de vista econômico (a perda de direitos) quanto político e ideológico. A criação de contratos atípicos, além de impor perdas de ordem material, divide os trabalhadores, cria cidadãos de segunda classe. Além disso, cria dificuldades para a ação sindical, sob dois aspectos: de um lado, porque o sindicato enfrenta obstáculos crescentes para representar esses trabalhadores precarizados; por outro lado, porque os trabalhadores que permanecem com contratos de duração indeterminada, com todos os direitos garantidos, tendem a ser atraídos pelo discurso patronal e a se afastar da organização sindical, pois se vêem permanentemente ameaçados de precarização.

E, pensando na situação atual do país, o neoliberalismo acabou?

Não, mas a política neoliberal do governo Lula apresenta algumas diferenças em relação aos governos anteriores. No que se refere à questão trabalhista – e vou me ater a esse âmbito na minha resposta –, o governo não fala em desconstitucionalizar direitos, ou em estabelecer a prevalência do negociado sobre o legislado, que foram medidas propostas pelo governo FHC e que encontraram resistência sindical; fala em diferenciar direitos. Embora o discurso e as estratégias sejam distintas, a lógica é a mesma, pois são fundadas num diagnóstico comum: a rigidez e o caráter obsoleto da legislação contida na CLT. Não há um compromisso do governo em assegurar e, muito menos, em ampliar os direitos trabalhistas.

Se o governo FHC defendia a necessidade de haver menos regras legais e mais regras negociadas, alegando que a negociação possibilita adequar as regras à situação de mercado e mudá-las mais agilmente, o governo Lula propõe a diferenciação das normas legais para determinados públicos-alvo e/ou segundo as condições locais/setoriais. Assim, o governo busca alcançar os mesmos objetivos, mas por outros meios, que provoquem menor reação.

Que marcas o neoliberalismo deixou na reforma trabalhista?

A marca da precariedade, da instabilidade, da incerteza. Os trabalhadores têm cada vez mais dificuldades para defender seus direitos, que são apresentados como privilégios – e isso é ainda mais forte no setor público –, bem como para resistir a teses como a da “empregabilidade”, do auto-emprendimento e do “trabalhador-empreendedor”, que individualizam o problema do desemprego e responsabilizam o trabalhador pelo sucesso ou fracasso de sua inserção profissional. O neoliberalismo estimula a concorrência e mina a solidariedade entre os trabalhadores, na medida em que atribui a culpa pela desigualdade social, pelo desemprego e pela informalidade aos trabalhadores protegidos pela legislação.