Mudanças climáticas e o Brasil: conseqüências reais, soluções viáveis. Entrevista com Carlos Nobre


Compreender as mudanças climáticas e buscar soluções para as suas conseqüências no território brasileiro é a intenção do programa Rede-Clima. Seu coordenador-geral, Dr. Carlos Nobre, falou com a IHU On-Line a respeito do assunto para compreendermos como essa problemática está sendo trabalhada aqui no país.

“O século XXI começou em 2007 com o lançamento do relatório do IPCC.” É o que diz o pesquisador do INPE, Carlos Nobre, para ele, o relatório lançado pelo IPCC causou uma verdadeira revolução porque trouxe um grande senso de urgência quanto às conseqüências das mudanças climáticas e às atitudes que levaram a quase um colapso climático no mundo. “Nós conseguimos atrair a atenção da sociedade como um todo para essa questão e de vários programas de pesquisa – e a Rede-Clima é um produto dessa percepção da sociedade, de que temos que estudar mais a questão”, disse. Nobre disserta, nesta entrevista, sobre o programa Rede-Clima, uma rede de pesquisas sobre as mudanças climáticas. Com ela, o INPE pretende prover o novo conhecimento sobre como as mudanças climáticas estão impactando no Brasil.

Carlos Nobre é engenheiro eletrônico, pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica. Doutorou-se em Meteorologia, pela Massachussets Institute Of Technology, nos Estados Unidos. Obteve o título de pós-doutor, pela University Of Maryland, em 1989. É representante da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e pesquisador sênior do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Há mais de 30 anos trabalho com questões relativas às mudanças climáticas.

 Quais são os resultados que a Rede-Clima pretende gerar?

A Rede-Clima é uma rede de pesquisas sobre as mudanças climáticas, e, após sua instalação e alguns anos para o desenvolvimento de um primeiro grupo de pesquisas, queremos prover o novo conhecimento sobre como as mudanças climáticas estão impactando no Brasil. Queremos, primeiro, detectar quais são aquelas mais importantes que estão ocorrendo sobre o território nacional. Além disso, devemos estudar os seus impactos numa série de setores, na agricultura, no aumento do nível do mar nas zonas costeiras, na saúde, nos ecossistemas naturais, na biodiversidade, nos recursos hídricos, especialmente no potencial de geração de hidroeletricidade, nas mega-cidades, no potencial de energia renovável de um modo geral. Essas são as várias áreas em que vamos prover uma série de estudos. É uma rede bem ampla, envolvendo uma dezena de instituições de pesquisa. E, junto com isso, os estudos também vão na direção de fornecer subsídios para políticas públicas, que irão buscar, primeiramente, reduzir as emissões de gases do efeito estufa, que causam o aquecimento global do Brasil como um todo e, em segundo lugar, mostrar o caminho que o país precisa tomar para se adaptar àquelas mudanças climáticas que já estão ocorrendo e aquelas que se projetam para o futuro das próximas décadas, até o final deste século.

E de que forma o Brasil está respondendo a essas demandas e os desafios provocados pelas mudanças climáticas no mundo todo?

Nós podemos, figurativamente, falar que o século XXI começou em 2007 com o lançamento do relatório do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), que, de certo modo, causou uma verdadeira revolução, não porque o assunto não fosse conhecido, mas porque os resultados do IPCC mostrados em 2007 trouxeram um senso de urgência à questão das mudanças climáticas globais, que a população do mundo não percebia. A partir daí, o Brasil passou também a responder. Nós conseguimos atrair a atenção da sociedade como um todo para essa questão e de vários programas de pesquisa – e a Rede-Clima é um produto dessa percepção da sociedade, de que temos de estudar mais a questão, que ela é importante para o país. Programas estaduais estão sendo criados em São Paulo, no Amazonas, em Pernambuco, em vários outros estados. Então, nós finalmente estamos vendo uma série de ações no terreno do aumento do conhecimento e também no terreno das políticas públicas. O Brasil já submeteu ao governo federal e acabou de submeter ao Congresso um esboço de uma política nacional de mudanças climáticas. Dessa política, vai se desenvolver o Plano Nacional de Mudanças Climáticas, que se tornará uma política nacional e fará o Brasil, finalmente, tomar ações em todas as esferas, dos governos, da sociedade civil organizada, do empresariado, do setor privado para responder a esse grande desafio que é para o mundo e também para o Brasil.

Que políticas e que outras estratégias para lidar com as mudanças climáticas precisam ser criadas a curto e a longo prazo?

A curto prazo, precisamos começar, cada vez mais, a buscar atividades econômicas que representem um menor padrão de emissões, quer dizer, reduzir emissões. Se não fizermos isso e começarmos logo, vamos perder a corrida tecnológica com o resto do mundo ou, pelo menos, com o mundo desenvolvido. Este, cada vez mais, caminhará na direção de usar técnicas, tecnologias mais limpas. Então, o Brasil, a curto prazo, precisa se engajar nesse esforço mundial e não perder o bonde da história, como às vezes lhe é comum.

A médio prazo, precisamos – ao mesmo tempo em que desenvolvemos a ciência, a tecnologia para nos adaptarmos e também com a implementação de medidas que tornem mais resistentes e mais capazes de se adaptar os setores econômicos e a população às mudanças climáticas – pensar em desenhar e inventar um novo Brasil, que poderá ser, em algumas décadas talvez, o país mais limpo do mundo. Isso pode acontecer se nos basearmos num modelo de desenvolvimento e de industrialização que utiliza muito os recursos naturais renováveis, que temos em abundância no país, e irão alavancar um novo modelo econômico usando dessa riqueza de recursos naturais renováveis, da água, das terras, do sol, do vento, do oceano e, principalmente, da nossa rica biodiversidade. Esse é, a médio prazo, um Brasil que precisamos inventar. E, para isso, políticas públicas precisam começar a permitir que ele nasça.

E de que forma a Rede-Clima vai nos ajudar a repensar a matriz energética brasileira?

A Rede-Clima irá promover uma série de estudos mostrando, globalmente, quais são as reduções de emissões que precisam acontecer. O Brasil, é lógico, já é um país que tem uma grande porcentagem de uso de recursos energéticos de fontes renováveis ou quase totalmente renováveis. O país tem, aproximadamente, 45% do seu uso de energia proveniente de fontes renováveis, e precisamos acelerar e, cada vez mais, passar dos 50%, 55%, 60%. Essa necessidade de diminuir as emissões fará com que o Brasil acelere o seu uso de fontes de energia renovável. É nesse sentido que as mudanças climáticas irão acabar por influenciar a política brasileira de energia.

E, em relação às queimadas, ao desmatamento e a outros problemas das matas brasileiras, como a Rede-Clima atuará nesse setor, que também acaba influenciando nas mudanças climáticas?

Nossa maior fonte de emissões vem dos desmatamentos, das queimadas, principalmente da Amazônia, mas também do Cerrado. O nosso calcanhar de Aquiles, no que se refere às emissões de gases do efeito estufa, é esse setor. E precisamos ter uma ação muito forte, muito intensa, urgente, rigorosa para diminuir drasticamente a quantidade de floresta e de Cerrado desmatada a cada ano. Não há necessidade econômica de expandir a fronteira agrícola indefinidamente em cima da Floresta Amazônica e também dos cerrados. Temos terra de sobra já alterada, já desmatada. A agricultura brasileira precisa se concentrar nas áreas já alteradas. Todos nós sabemos disso, mas é importante implementar políticas que garantam que essa fronteira não se mova mais para cima da floresta ou para cima do Cerrado. Que a agricultura, na intensificação que necessite receber, aconteça nas áreas já desmatadas. Se conseguirmos isso nos próximos anos, o Brasil tem tudo para se tornar um dos países mais limpos do mundo. Essa é uma missão, uma meta, do país. Ele deveria ter metas para reduzir o desmatamento a cada ano. Assim como possui metas de eliminação do analfabetismo, redução da mortalidade infantil, que são nacionais, o Brasil precisa estabelecer metas nacionais de redução dos desmatamentos. Se fizermos isso, tenho certeza que ao longo de uma década, de 15 anos, os desmatamentos chegarão muito próximo de zero, exatamente porque não existe nenhum outro país no mundo que tenha tanta área propícia para a agricultura já alterada.

Como você percebe essa relação entre o homem e o meio ambiente? É uma relação insustentável?

Na trajetória que pautou o desenvolvimento econômico do século XIX e do século XX, após a Revolução Industrial, é insustentável. Cada vez mais, passamos a utilizar recursos naturais, muitos deles não-renováveis, como o petróleo, o carvão natural, minérios. Cada pessoa passou a consumir mais recursos. Não é só o crescimento populacional que exerceu uma pressão sobre os recursos do planeta. É que cada pessoa passou a usar mais recursos. Nós utilizamos muito mais energia,  materiais e alimentos do que a geração dos nossos pais, dos nossos avós. Esse crescimento do que se tira do meio ambiente, dos recursos naturais, é insustentável a longo prazo, mesmo que a população do planeta se estabilize, se imaginarmos que eticamente cada ser humano tem direito inalienável à qualidade de vida. Não é possível que cada habitante do planeta tenha um padrão de consumo de energia, de alimentos, de materiais, de recursos naturais de um habitante dos Estados Unidos ou da Europa Ocidental, ou mesmo do Japão. Nós precisamos mudar essa trajetória. A relação da nossa espécie com o ambiente deve passar por uma transformação cultural profunda. A sociedade pós-industrial deve ser desmaterializada. É necessário partir para a sociedade da reciclagem máxima. No futuro, não haverá mais esses serviços de coleta de lixo, como caminhão de lixo, porque tudo precisará ser reciclado e ter vida muito longa. E a maioria dos empregos do futuro não será mais da transformação material do que precisamos para viver bem. Os empregos do futuro serão intelectuais, à medida que utilizaremos a nossa faculdade superior, a inteligência. A transformação material logicamente sempre irá existir, porque nós precisamos de tudo para viver. No entanto, ela será minimizada e nós reciclaremos tudo. Esse é o futuro ao qual precisamos chegar, porque, caso contrário, iremos causar uma mudança ambiental global de tal magnitude que, de fato, na escala de séculos, poderemos colocar sérios riscos à sustentabilidade da vida no planeta Terra.

 Hoje, levar água para o semi-árido é uma necessidade, e há diversos projetos que prevêem sanar esse tipo de problema. Qual a sua opinião sobre a transposição do rio São Francisco e a construção das usinas hidrelétricas do rio Madeira?

A questão do semi-árido do Nordeste é mais complexa. Ela não se presta a uma solução tecnológica simples. Nem a transposição do São Francisco nem uma eventual transposição de águas da bacia do Tocantins, do Estado do Tocantins para a Bahia, irão atacar a questão da pobreza rural do Nordeste. Essa é uma questão de subdesenvolvimento de milhões e milhões de brasileiros que vivem de uma base econômica incerta, da produção de alimentos, da agricultura de sequeiro, que depende da água das chuvas e, no semi-árido do Nordeste, é incerta e irregular. Essas questões são muito mais difíceis de resolver do que um canal que puxa água de um rio ou de outro.

Qualquer projeto de transposição deve ser visto dentro do seu limitado escopo. Trata-se de um projeto que dará segurança hídrica para algumas grandes ou médias cidades. As cidades poderão crescer sem o medo de uma mega-seqüência de secas, que secaria os açudes, e a cidade poderia correr o risco de ter um colapso de abastecimento. Esses projetos precisam ser vistos dentro desse ângulo e também no ângulo de, eventualmente, beneficiar, em alguma área limitada, a irrigação, a agricultura irrigada, de alta produtividade e também valor agregado. Certamente, a agricultura irrigada e de alta produtividade tem um valor econômico que precisa ser preservado. No entanto, é importante que se diga que o programa básico de 10, 12 milhões de habitantes da zona rural do semi-árido não está resolvido. E as mudanças climáticas tornarão esse programa ainda mais agudo. O clima previsto para o futuro, mais quente, com secas mais acentuadas, tornará a agricultura não-irrigada no semi-árido do Nordeste ainda mais marginal do que já é hoje.

O homem pode retardar a ação da natureza em relação ao aquecimento global?

É muito importante que tenhamos em mente que, se nada for feito, se essa trajetória continuar, ainda existe tanto combustível fóssil no subsolo que podemos aquecer o clima do planeta muitos e muitos e muitos graus e podemos, de fato, induzir transformações que tornarão o clima muito diferente do que temos observado, vivido, experimentado durante todo o período do homo sapiens –  200, 250 mil anos e até milhões de anos. Isso tudo em décadas, em um século. Temos, realmente, que reduzir o risco futuro. Não podemos legar para o futuro, para os nossos filhos e netos, uma condição ambiental que lhes ofereça mais dificuldades do que recebemos dos nossos pais. Até porque os nossos pais – pelo menos os pais das pessoas da minha geração – não tinham consciência de que o que eles julgavam ser um enorme progresso material do pós-guerra e das décadas de 1960 e 1970 pudesse ter uma conseqüência tão deletéria para o clima global. Nós sabemos. A nossa geração e as futuras sabem e saberão. Então, a responsabilidade que está sobre os nossos ombros é muito maior. Precisamos tomar uma ação muito forte, com muita energia, para mudar a trajetória que temos trilhado de uso dos recursos naturais do planeta. É preciso inverter a curva e passar a uma trajetória com muito maior possibilidade de sustentabilidade da vida no planeta. Não há como evitar, e devemos enfrentar essa dura questão.