O jornalista e doutor em ciência política fala da importância do legado de Hugo Chávez

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“A Venezuela não retornará para seu estágio anterior, mesmo que a oposição vença as eleições presidenciais algum dia”. A afirmação é de Bruno Lima Rocha em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, ao comentar as expectativas em relação à política venezuelana após a morte de Hugo Chávez. Na avaliação dele, o legado chavista é evidenciado “na melhor distribuição do PIB do país, sendo que até 1998 este era concentrado. 80% da riqueza gerada no país, majoritariamente através do petróleo da PDVSA, (…) não chegava nem a 20% da população”. Apesar de vislumbrar uma continuação imediata do projeto político chavista, Rocha ressalta que “este legado implica em herança política e as lideranças chavistas não têm o grau de coesão interna necessária para mantê-lo. Quando a oposição for novamente derrotada nas urnas, o problema voltará a ser endógeno”.

Internamente, pontua, é provável que o governo sucessório mantenha os “serviços de assistência e distribuição de renda através de vários programas de benefícios”, além de relações comerciais e políticas com “líderes e países que estejam afastados da órbita dos EUA. Mas, a partir destas definições mais amplas, agora qualquer previsão seria mais especulativa do que analítica”.

Bruno Lima Rocha possui graduação em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e mestrado e doutorado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

Confira a entrevista:

Por um lado, o sistema político venezuelano recebeu muitas críticas
por causa da atuação de Hugo Chávez e, por outro, teve apoio popular e de alguns segmentos de esquerda. Qual foi o projeto político dele?

Responder a essa pergunta, como tudo o que se refere à Venezuela após 1998, é também estabelecer uma posição analítica. Chávez é um personagem que emerge como herói nacional após um fracassado intento de golpe em fevereiro de 1992. Este momento refletia uma exaustão do pacto oligárquico e ia ao encontro do desespero da população após os massacres decorrentes do Caracazo de 1989. O que podemos interpretar é que Chávez e seus aliados mais próximos entendiam a necessidade de romper com o Pacto de Punto Fijo e trazer para a política as massas excluídas do país. Para tanto, tinham de transferir algum tipo de poder para estas e canalizá-lo através do líder carismático. Já a legitimidade veio com o mecanismo eleitoral, acusado pela direita de ser plebiscitário. Os quase 14 anos à frente do Palácio Miraflores também serviram para recompor as elites dirigentes do país, com todo o custo que isso acarreta, incluindo a presença de arrivistas e trânsfugas vindos do período oligárquico.

Chávez sempre falava em desenvolver o socialismo do século XXI. Em que consistia tal proposta e como ela foi desenvolvida ao longo do seu governo?

Entendo que o projeto de Chávez foi o de modernização da sociedade, desenvolvendo dentro do possível os serviços públicos, fazendo com que o Estado atendesse minimamente aos anseios e direitos das maiorias. O socialismo do século XXI chegou a ser esboçado em situações como as Mesas Político-Técnicas e experimentos de autonomia comunal (nas chamadas comissões de terra), em zonas urbanas, suburbanas e rurais por exemplo. Mas, quando o Movimento V República dá vazão para a criação do PSUV, este “partido” com quase nenhuma unidade programática não pode ser o motor de câmbio social algum. Se não fosse pela presença da oligarquia, veríamos um processo socializante muito mais interessante, aflorando contradições e conflitos por dentro do movimento bolivariano e que iria contra a chamada direita endógena. Infelizmente, em minha avaliação, o socialismo do século XXI torna-se um recurso discursivo para retomar a propagação de ideias socialistas, sobre as quais o próprio Chávez não manifestava um alto grau de definição.

Quais foram os principais erros e acertos do governo chavista?

Depende do ponto de vista, mas para a perenidade do projeto, seria preciso aumentar o nível da cultura política e tentar modificar o Estado por dentro. Entendo que um erro era a excessiva centralização decisória e o acionar um tanto irregular, muito suscetível. É o que em castelhano se chama de ocurrencias. Ocorria-lhe uma ideia e era capaz de mover montanhas para interpretá-la, lia um livro e o citava no discurso seguinte. Um acerto foi combater o controle da mídia por capitais e famílias oligárquicas, lembrando-as que eram detentoras de concessão pública e não hereditária por usucapião do espectro radioelétrico. Outro acerto, esse sim um golaço, foi criar toda uma estrutura de assistência e promoção social, totalmente inexistente antes.

Quais as transformações sociais, culturais e econômicas da Venezuela proporcionadas pelo governo Chávez? Qual é o legado dele?

A Venezuela não retornará a seu estágio anterior, mesmo que a oposição vença as eleições presidenciais algum dia. O legado de Chávez está na melhor distribuição do PIB do país, sendo que até 1998 este era concentrado. 80% da riqueza gerada no país, majoritariamente através do petróleo da PDVSA (uma estatal com Chávez, uma empresa de capital misto, mas sob controle oligárquico antes), não chegava nem a 20% da população. Para os demais era a loteria da vida, incluindo um elevado grau de repressão política – considerando desaparecimentos e assassinatos. Se esta noção de que as maiorias mobilizadas conseguem assegurar as conquistas e arrancar os direitos for mantida, com certo grau de beligerância de classes, então o legado de Chávez se mantém. O problema é que este legado implica em herança política e as lideranças chavistas não têm o grau de coesão interna necessária para mantê-lo. Quando a oposição for novamente derrotada nas urnas, o problema voltará a ser endógeno.

Que leituras podem ser feitas dos dados sociais apresentadas ao longo do governo Chávez. Hoje o povo vive melhor na Venezuela?

Não vou ficar listando dados aqui, pois os índices de PIB e o coeficiente de GINI – padrões que são contestáveis, mas aceitos em escala mundial – são irrefutáveis. Hoje os venezuelanos vivem melhor, têm identidade própria, serviços básicos de assistência e direitos e, diante da economia venezuelana, uma expectativa de vida considerável. Antes, as maiorias da Venezuela não tinham nada, o que inclui populações rurais, afro, remanescentes de quilombo, pescadores artesanais, agricultores e demais setores que viviam em produção artesanal. As missões sociais e as atividades vinculadas aos ministérios do poder Executivo são irrefutáveis. Não vejo um retrocesso possível, com a piora nas condições de vida sendo aceitas pelas maiorias.

Quais as expectativas políticas para a Venezuela nos próximos anos?

Entendo que Nicolás Maduro vai ganhar as eleições de forma marcante contra a nova unidade da oposição através do governador do estado de Miranda, Henrique Capriles. Nas últimas eleições estaduais, o PSUV levou 20 de 23 estados. Após a vitória provável, o futuro repousará na relação entre Maduro e os demais chefes políticos e entre o PSUV e os movimentos populares.

Que paralelo é possível traçar entre Lula e Chávez com demais líderes da América Latina?

Chávez vem a ser uma versão mais crível de Lula, sendo que o ex-presidente do Brasil é considerado por ideólogos da direita latino-americana como o líder de uma centro-esquerda não classista. A dimensão de classe, em sua perspectiva mais comum (vinculada ao mundo do trabalho), está pouco presente no discurso de Chávez e totalmente ausente no discurso e na prática política de Lula. Mas o governo de Chávez rompe com a oligarquia de seu país enquanto aqui ela saiu fortalecida, assim como os setores da indústria, da construção civil, do latifúndio e financeiro. Chávez e Lula disputariam uma hegemonia nas relações internacionais latino-americanas e, mesmo sob a liderança brasileira, foi o acionar da Venezuela que levou a frear a instalação da Área de Livre Comércio das Américas – Alca e reposicionar parcialmente a política externa do Brasil. A política externa mais agressiva e disposta a reinvestir em cadeias produtivas quebradas nos países vizinhos também foi muito positiva.

Barack Obama declarou que está disposto a uma reaproximação com a Venezuela. Após a morte do presidente Hugo Chávez, haverá alguma mudança quanto às relações estadunidenses com a América Latina?

Isso sim pode acontecer e pode vir a abalar as relações latino-americanas. Se a Venezuela é o pilar de uma proposta de unidade da América Latina, caso o Departamento de Estado consiga modificar a posição da Venezuela, ou, por exemplo, intervenha de alguma forma no comércio bilateral entre os dois países, talvez a nova liderança de Maduro venha a abrandar as relações políticas. O que ocorre é uma parceria comercial dissociada das relações políticas. O primeiro governo de Obama à frente do Departamento de Estado conseguiu algumas vitórias no continente, tais como os golpes brancos em Honduras e no Paraguai. Seria uma vitória para o acionar do Império o abrandamento das posições da Venezuela como pilar de uma proposta de unidade política e econômica – dentro dos marcos do capitalismo, a exemplo do que ocorria no período do Estado Nacional-Desenvolvimentista – no continente.

Que futuro vislumbra para o chavismo? A linha político-ideológica implementada poderá se manter sem Chávez?

É justamente nesta multiplicidade de linhas e interpretações que reside o perigo. Chávez diante dos opositores gera mais coesão do que à frente de seus aliados e seguidores. Internamente, o seguro é a manutenção dos serviços de assistência e distribuição de renda através de vários programas de benefícios. Externamente, a manutenção das relações comerciais variadas e aproximações políticas com líderes e países que estejam afastados da órbita dos EUA. Mas, a partir destas definições mais amplas, agora qualquer previsão seria mais especulativa do que analítica.

Deseja acrescentar algo?

Uma das características mais importantes no período de Chávez foi a incorporação de uma nova simbologia no país. Os movimentos venezuelanos inspiram-se nas releituras de Bolívar, Sucre, Miranda, Bóves, Zamora e outros líderes populares do período da independência e dos primeiros anos de república. É muito relevante haver várias esquerdas que saibam mesclar o uso das novas tecnologias, que operem na chamada guerra de 4ª geração (informação, sentido, identidades, versões) e, ao mesmo, tempo que tentem refletir uma continuidade com a formação da sociedade venezuelana.