Eufemismo é truque para amenizar os fatos

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Por Frei Betto

Hoje vamos falar de uma palavra aparentemente difícil: eufemismo. Começo por uma das definições deste vocábulo, que é a arte de enganar. No livro De Pernas pro Ar, de Eduardo Galeano, o autor lembra que na era da rainha Vitória, na Inglaterra, era proibido mencionar a palavra calça na presença de uma jovem. Hoje, em dia, diz Galeano, não cai bem utilizar certas expressões perante a opinião pública.

Ele, então, cita “o capitalismo exibe o nome artístico de economia de mercado. O imperialismo se chama globalização, e suas vítimas são os países em desenvolvimento. Oportunismo, hoje, se chama pragmatismo. Despedir no emprego, sem indenização e explicação se chama flexibilização trabalhista”, e por aí vai.

A lista é longa, acrescento eu, como são longos e inúmeros os preconceitos que carregamos. Negro é chamado de afrodescendente, embora, ninguém nunca tenha dito que eu sou iberodescendente, ou eurodescendente. Ladrão é sonegador. Lobista é consultor. Fracasso é crise. Especulação é derivativo. Latifúndio é agronegócio. Desmatamento é investimento rural. Lavanderia de dinheiro desonesto é paraíso fiscal. Acumulação privada de riquezas é democracia. Quando os bens são socializados, chamam de ditadura. Governar a favor da maioria é populismo. Tortura, que continua sendo praticada nas nossas delegacias, é constrangimento ilegal. Invasão, que os EUA fazem em várias partes do planeta, é intervenção. Peste é pandemia. Uma pessoa magricela é anoréxica.

Nessa crise política e econômica que o Brasil atravessa atualmente, aumento da conta de luz virou realinhamento dos preços de energia. Recessão virou retração. Sonegação, evasão fiscal. Cortes e aumentos de impostos são chamados de ajuste fiscal ou reversão de ações anticíclicas, parece até coisa de meteorologia.

Eufemismo é a arte de dizer uma coisa e acreditar que o público escuta, ou lê, outra. É um jeitinho de escamotear significados. De tentar encobrir verdades e realidades.

Posso admitir, por exemplo, que pertenço à terceira idade, embora, esteja na minha cara: sou velho. Velho e assumido, pois, não tinjo o cabelo, nem fiz plástica. Há quem prefira outros eufemismos como, por exemplo, melhor idade, a turma da dignidade etc. Ora, poderia dizer que sou seminovo, como os carros em revendedoras. São todos velhos, mas são chamados de seminovos, porque o adjetivo seminovo torna todos aqueles veículos mais facilmente vendáveis. Ainda mais quando o comprador ignora que, hoje em dia, não é nada difícil adulterar o marcador de quilometragem. Aliás, como tantos velhos que se empenham, ridiculamente, em disfarçar a idade.

Todos nós, que vivemos no estado de São Paulo, sabemos que há notório racionamento de água, mas o governador Alckmin não gosta da expressão, embora lhe tenha escapado da boca, há pouco tempo. Ele prefere dizer que estamos em contenção hídrica.

No dia 20 de janeiro deste ano, que caiu numa segunda-feira, houve apagão em 11 estados e no Distrito Federal.  O planalto veio a público tentar negar o óbvio, que milhões de pessoas ficaram privadas de energia. O planalto falou em desligamento técnico.

Coitadas das palavras. Parafraseado Lampedusa, escritor italiano, são distorcidas para que a realidade escamoteada permaneça como está.

Não conseguem, contudo, escapar da luta de classes.  Pobre é ladrão, rico é corrupto. Pobre é puta, rica é modelo. Pobre é viciado, rico é dependente químico.

Em suma, eufemismo é um truque semântico para tentar amenizar os fatos. Os fatos, porém, gritam, e não há como ficar surdos a esses gritos.

* Frei Betto é assessor de movimentos sociais e autor de diversos livros, dentre eles, o romance policial ‘Hotel Brasil’, da editora Rocco.