Estudo feito pela pesquisadora revela que a grande maioria dos jornalistas tem formação política débil e pouca capacidade de análise

 

Um estudo realzado com 538 jornalistas que trabalham em São Paulo revelou profundas mudanças no perfil da profissão. A pesquisa realizada pela jornalista e professora da Universidade de São Paulo – USP Roseli Figaro mostrou que a formação política e a postura crítica dos jornalistas foram prejudicadas nas últimas gerações. As razões são diversas, mas as que pesam mais estão relacionadas ao enxugamento das redações e ao aumento do volume de trabalho, sem contar a falta de racionalização sobre a prática. “Uma questão que nos preocupou foi que uma minoria, em torno de 30%, tem noção de que o trabalho do jornalista é fundamental para preservar o direito do cidadão à informação. A maior parte vê a informação como um produto, um negócio. Quando colhemos os depoimentos, alguns deles chamaram a atenção pelo despreparo ou desinteresse desses profissionais com relação aos grandes temas e ao discernimento do papel do jornalista”, aponta Roseli na entrevista concedida por telefone à IHU On-line (Instituto Humanitas Unissionos).

A pesquisa completa, que começou a ser feita em 2010 e realizada pela professora Roseli Figaro, junto com os doutorandos Rafael Grohmann e Cláudia Nonatom será lançada no próximo mês no livro intitulado As mudanças no mundo do trabalho dos jornalistas (Atlas, 2013). Resumidamente, o que o estudo indica é que os profissionais de imprensa são majoritariamente não sindicalizados, de formação política débil e com pouca capacidade de análise. “O jornalismo surge justamente no nascimento do racionalismo, na constituição do Estado frente à Igreja, no momento em que se constituem a república, a democracia e os conceitos de liberdade. São essas questões que são pouco vislumbradas por estes profissionais”, avalia a pesquisadora.

Roseli Aparecida Figaro Paulino é professora livre-docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da USP. Possui pós-doutorado pela Universidade de Provence, França. Ela é coordenadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa da USP/Comunicação e Censura e do Grupo de Pesquisa do Arquivo Miroel Silveira. Dedicou seus estudos à comunicação relacionada ao mundo do trabalho. É também autora de outros seis livros, entre eles, citamos: Comunicação e Análise do Discurso (São Paulo: Contexto, 2012).

Confira a entrevista:

Quais foram os principais indícios que motivaram a realização da pesquisa?

 
 

O nosso Centro de Estudos em Comunicação e Trabalho está voltado ao mundo dos comunicadores desde 2008, quando fizemos uma pesquisa com empresas que contratam jornalistas, publicitários, relações públicas, enfim, pessoas que tiveram como formação a área da comunicação. Nela foi onde percebemos haver uma coisa muito nova acontecendo com os jornalistas. Foi então que, depois do término desta primeira investigação em 2010, começamos um novo estudo com os jornalistas.

Nosso centro de estudo foi conversar com o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, cuja mostra inicial foram os jornalistas associados. A pesquisa trata de métodos quantitativos e qualitativos. Primeiro, aplicando um questionário fechado para que pudéssemos conhecer o perfil socioeconômico e cultural dos investigados. Feito esse primeiro mapa, selecionamos aleatoriamente jornalistas e fizemos entrevistas em profundidade e formamos grupos de discussão. Nesse primeiro levantamento verificamos que a maioria dos associados eram homens, com perfil acima da 35 anos e a maior parte deles com registro em carteira ou vínculo fixo. O que se percebeu é que esse perfil era diferente da primeira pesquisa e, por isso, realizamos outras amostras.

Em um segundo momento buscamos jornalistas em redes sociais da internet e em redes sociais de jornalistas para também responderem a um questionário. O retorno aqui já mostrava uma mudança em relação à pesquisa com os jornalistas sindicalizados. Então fizemos mais amostras com jornalistas freelancers e com empregados de uma grande empresa de comunicação de São Paulo.

Perfil

Com essas quatro amostras, pudemos verificar que o perfil atual do jornalista é feminino e que a maior parte destas jovens tem até 35 anos. Um outro dado é que os vínculos de trabalho não são tão estáveis e que as formas precárias de contração são por meio de contratos com Pessoa Jurídica e freelancer fixo. Todos eles com diploma de jornalista, mas não sindicalizados. Uma grande parte dos entrevistados já tinha especialização, além do curso de ensino superior. Investiram na formação apesar dos vínculos de trabalho serem precários. Os salários, sobretudo dos freelancers (40% do total), chegam até R$ 2 mil e a maioria recebe entre R$ 2 mil e R$ 6 mil.

Visão crítica

 

Na fase qualitativa da pesquisa, percebeu-se que um número pequeno dos entrevistados tem visão um pouco mais crítica sobre o trabalho e sobre sua situação profissional. A maioria dos entrevistados trabalha de 8 a 10 horas por dia. Frequentemente os freelancers precisam de maior rendimento, o que os faz buscar mais e mais trabalhos. Isso para garantir o sustento e condições mínimas de bem-estar. Essas condições de trabalho aparecem de maneira muito reduzida quando os jornalistas vão falar das origens dos problemas de trabalho.

A pesquisa também alerta para a falta de postura crítica dos novos jornalistas. Quais as razões dessa postura?

Uma questão que nos preocupou foi que uma minoria, em torno de 30%, tem noção de que o trabalho do jornalista é fundamental para preservar o direito do cidadão à informação. A maior parte vê a informação como um produto, um negócio. Quando colhemos os depoimentos, alguns deles chamaram a atenção pelo despreparo ou desinteresse desses profissionais com relação aos grandes temas e ao discernimento do papel do jornalista. São poucos os que declararam uma preocupação em relação ao seu papel profissional, com a cidadania e democracia, ou seja, preocupação com seu papel de mediador social. Apareceu em alguns depoimentos, sobretudo dos mais jovens, uma falta de consciência crítica do papel social do jornalista.

Na pesquisa é apontado que há poucos jornalistas sindicalizados. Por quê?

 Nós não perguntamos por que razão isso acontece. Mas nos grupos de discussão e nas entrevistas apareceu uma falta de clareza quanto ao papel social dos jornalistas. Essa falta de sindicalização me parece uma decorrência disso, um sintoma desta situação. Há uma situação empregatícia muito precária e não se conseguem vislumbrar alternativas coletivas, mas apenas uma perspectiva muito individual  o que também é um sintoma de nossa época.

 O que os dados dizem sobre a formação profissional? Que tipo de jornalista tem se formado?

Como dito, todos têm diploma, sobretudo os mais jovens. A maioria deles busca cursos de especialização, mas o que se verifica é que a ideia da prática, da técnica, é ainda muito presente. As “críticas” pontuais às escolas e cursos de jornalismo vão no sentido de que os alunos fugiam das aulas de filosofia ou de teoria. Pior ainda, houve pessoas que disseram: “Se a gente fosse direto para o mercado aprenderíamos mais”. Vendo as práticas, o que percebemos é exatamente o contrário. O jornalismo não é um problema técnico, de saber operar com um manual, por exemplo, mas exatamente entender seu papel como mediador social, sobretudo na defesa do direito à informação. O jornalismo surge justamente no nascimento do racionalismo, na constituição do Estado frente à Igreja, no momento em que se constituem a república, a democracia e os conceitos de liberdade. São essas questões que são pouco vislumbradas por estes profissionais.

Onde a falta de formação humanística e política se torna visível nos produtos jornalísticos?

 
 

A pesquisa não tratou disso, mas minha opinião como professora e pesquisadora é a seguinte: quando vamos tratar da grande imprensa que, claro, tem uma linha editorial onde desenha sua opinião sobre o mundo e os fatos, o que se percebe são práticas que extrapolam os editoriais. As matérias, notícias, deveriam pelo menos trazer pontos de vista diferenciados sobre os fatos. As rotinas produtivas neste ritmo de trabalho que é colocado ao jornalista, com as redações enxutas, o excesso de tarefas e a premência do tempo, faz com que ele, às vezes, negligencie esse aspecto que é fundamental de sua profissão. O que vemos muitas vezes são matérias que deixam a desejar no quesito dos diferentes pontos de vista. Isso prejudica e baixa a qualidade do próprio veículo. Daí se percebe que os mais jovens preferem buscar informações na internet, mas isso também não resolve o problema da qualidade. Se o jornalista não tem consciência do seu próprio trabalho, é claro que isso vai aparecer no produto que ele vai oferecer.

A que atribui a precária formação política e humanística dos jornalistas recém-formados? Essa formação tem a ver com o momento político e econômico do país?

Essa é uma questão que extrapola a questão dos jornalistas. Estamos acompanhando a movimentação das manifestações; então, o problema da análise do que está acontecendo não deve ser cobrado apenas dos jornalistas. Isso porque todos nós estamos surpresos com o volume dessas manifestações e não podemos exigir que o jornalista tenha condições de fazer uma análise exata do que está acontecendo, pois nem os sociólogos estão sabendo fazer.

São muitas variáveis e componentes e não temos a dimensão exata disso. Agora, certamente, os jornalistas, que estão ali com a tarefa de acompanhar e relatar esse fato, têm muitos elementos, informações. Como organizá-los sem uma consciência crítica tudo isso se torna ainda mais difícil. Análises mais apressadas que menosprezam fatos ou que deem uma dimensão que eles não têm se torna, de fato, uma coisa mais perigosa.

Diante da instrumentalização da formação de jornalista, qual a importância do diploma?

Eu sou a favor do diploma. Se nós temos uma conquista na formação do jornalista é exatamente a obrigatoriedade do diploma. A questão é se as escolas e cursos de jornalismo são adequados. É comum que se perceba uma dimensão que separa teoria e prática. Talvez esta perspectiva seja o que tenha prejudicado a visão das novas gerações. Estamos vivendo um momento de convergência de mídias, de gêneros discursivos, etc. Cada vez mais as equipes são multidisciplinares – com jornalistas, publicitários, produtores audiovisuais. Não se pode pensar apenas uma formação técnica. O comunicador não pode pegar um fato e se relacionar com ele de uma maneira descompromissada. Ele precisa entender o processo comunicacional e a força disso em um espaço tão complexo quanto a nossa sociedade contemporânea. Um dos dados da pesquisa apontou que a maioria dos jornalistas se formou em faculdades particulares, e que essa formação mais pragmática é maior nas universidades privadas. Portanto, o jornalista como comunicador tem que entender o processo de comunicação por inteiro.

Na tensão entre "interesse público" e "interesse do público" – considerando a prática das corporações de comunicação , quem ganha e quem perde tendo em conta uma formação política débil dos profissionais?

A linha editorial de cada veículo de comunicação é muito mais tranquila de ser assimilada, ensinada, apreendida por aquele profissional que não tem uma visão crítica própria. Então, ele vai naturalizar a linha editorial do veículo para o qual ele trabalha como uma visão de mundo. Mas o jornalista – até mesmo para fazer um bom trabalho para a empresa a que está vinculado – tem que ter uma perspectiva crítica e mais ampla que a própria linha editorial. Caso contrário, não vão precisar dele. A questão do direito público à informação não tem nada a ver com o público-alvo. Há uma coisa de que o jornalista trabalha para o “cliente-leitor”, e isso é uma exigência das empresas. Muito diferente é a visão que se tem do que é interesse público.

Que desafio está posto às universidades, especialmente aos cursos de comunicação, diante de tal contexto? Como resolver tal situação?

Primeiro, é um desafio de que o jornalista se pense como um comunicador e a comunicação como uma área fundamental da sociedade contemporânea. Ela está envolvida em todos os aspectos da economia e da sociedade. É por isso que todos precisam de um jornalista, até salão de beleza contrata jornalista. É uma profissão fundamental na contemporaneidade e não temos dado a devida importância. Não é porque as empresas estão demitindo jornalistas que eles deixaram de ser importantes. Há um período de transição, o jornalista está mudando a forma como ele organiza o trabalho.

Então, são estas questões que precisam ser mais discutidas e sobre as quais o sindicato deve se debruçar. Não do ponto de vista da corporação, mas do que está acontecendo para que não sejamos vítimas do fato dado, no sentido de ser protagonista e discutir mais profundamente esse momento. Por exemplo, a questão das equipes multidisciplinares e a forma como o jornalismo se amplia para outras áreas, além das instituições tradicionais e o papel que isso adquire na questão educacional. Também a forma como ele pode ajudar a desempenhar a educação no país. Na verdade, a profissão do jornalista está se ampliando e não se reduzindo, como muitos pensam.

Com quais questões os jornalistas deveriam se preocupar, considerando sua formação e carreira?

Sobretudo diante de tudo que está acontecendo no mundo e no nosso país, considerando essa mudança cultural, o acesso à informação e ao conhecimento é uma preocupação fundamental. Além disso, ter em conta qual é o papel do jornalista diante disso tudo deve ser a principal reflexão dos profissionais.