Dirigente cutista:“Herança da ditadura militar está viva no Brasil”

CUT, por Willian Pedreira

Lauro Fagundes. Natural de São Paulo, 60 anos, iniciou sua militância no movimento secundarista nos anos 1967/68. Entrou na USP (Universidade de São Paulo) em 1973 e no mesmo ano passou a integrar uma organização clandestina na luta contra a ditadura militar. Professor, foi um dos fundadores do Sinpro-ABC (Sindicato dos Professores do ABC) e da CUT (Central Única dos Trabalhadores), ambos em 1983.

Durante o período do golpe, muitos militantes recorriam à utilização de nomes falsos como artifício para escapar da repressão militar. Lauro Fagundes é, na verdade, Julio Turra Filho, o Julinho.

Quem conhece o hoje diretor executivo da CUT sabe que cada conversa é uma aula de história e irreverência. Em entrevista ao Portal do Mundo do Trabalho, Julio relembra passagens marcantes na sua militância em resistência à ditadura militar, conta como foram as suas duas prisões no Dops e afirma que a herança da ditadura ainda está viva no Brasil.

Remover os entulhos da ditadura – durante a entrevista, Julio Turra aborda diversas questões. Afirma que “é preciso resgatar a memória e a verdade para que histórias como esta não se repitam, até porque a herança da ditadura militar está viva no Brasil.”

A própria militarização da polícia foi obra da ditadura. A Polícia Militar, criada para ser um dos braços do aparelho repressivo, atuou ostensivamente contra todas as formas de oposição, fossem militantes de esquerda, estudantes ou operários em greve. Como no caso do metalúrgico Santo Dias, assassinado com um tiro nas costas por um policial militar na porta de uma fábrica em 1979.

A máquina de eliminar inimigos manteve-se intacta e continua hoje a propagar a cultura do ódio, da repressão e da truculência. A Lei de Segurança Nacional também criada na ditadura ainda não foi revogada. “Não é casual que ao contrário de outros países da América Latina os crimes da ditadura no Brasil ainda não tiveram seus responsáveis punidos”, analisa Julio.

E a própria legislação eleitoral brasileira é baseada na Lei Falcão da ditadura militar – que possui este nome em alusão ao então Ministro da Justiça, Armando Falcão. Ela estabeleceu o esquema de representação no formato de oito deputados no mínimo por Estado e 70 no máximo. “Isso provoca uma desproporção enorme na representação. O Brasil é um País onde não vale a regra um eleitor um voto. Não tem uma proporcionalidade. O caminho que nós estamos apontado junto com outras organizações dos movimentos sociais é a reforma política. Será necessário muita pressão para fazermos o plebiscito popular neste ano na semana da pátria por uma Constituinte exclusiva e soberana sobre o sistema político, que possa eliminar os entulhos da ditadura”, disse.

O inicio a história de militância de Julio Turra Filho começa num período de radicalização da ditadura militar. Em meados de 1967/68 participa do movimento secundarista (segundo grau/ensino médio) no Colégio Estadual Doutor Otávio Mendes, no bairro de Santana, São Paulo.

“Em 68 repercutia no Brasil a conjuntura internacional, porque foi uma virada. Teve o maio/junho francês, o massacre dos estudantes em Tlatelolco no México, o processo de revolução política contra a burocracia na Tchecoslováquia”, recorda. Mas logo em dezembro, com a promulgação do AI-5 (Ato Institucional número 5), a atividade política no Brasil foi reduzida a zero.

Conhecido como “o golpe dentro do golpe”, o AI-5 oficializou o terrorismo de Estado. Os militares fecharam o Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas e passaram a ter plenos poderes para cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos dos cidadãos pelo período de 10 anos, proibir manifestações populares de caráter político, censurar os meios de comunicação, legislar por decreto, entre outras medidas autoritárias.

Ao mesmo tempo, generalizava-se o uso da tortura, do assassinato e de outras formas de repressão. O slogan oficial “Brasil, ame-o ou deixe-o” ganhava às ruas do País.

Alguns grupos recorreram à luta armada. Não foi a opção de Julio, à época com 15/16 anos. Indagado o porquê desta decisão, diz que em sua concepção para combater a ditadura era necessário um trabalho de massa. “A luta armada acabou sacrificando militantes de grande valor numa disputa desigual de poucos contra o aparato repressivo da ditadura”, lamenta.

Resistir é preciso – em 1973, Julio inicia o curso de Ciências Sociais na USP (Universidade de São Paulo). Era a fase de reconstrução do movimento estudantil.

A partir de julho entra para uma organização clandestina, a Organização Comunista 1º de Maio que no final de 1976 fundiu-se com a Organização Marxista Brasileira dando Organização Socialista Internacionalista (OSI), atual Corrente O Trabalho do PT (Partido dos Trabalhadores). “A repressão era intensa. Havia um clima de tensão, a qualquer momento você poderia se preso. Não era fácil, pois eu era jovem e vivia completamente na clandestinidade”, lembra.

Repressão e medo – o aparelho repressivo brasileiro envolvia em sua complexa estrutura a espionagem, censura, polícia política e um sofisticada esquema de propaganda.

Um estado organizado para difundir a obediência e eliminar qualquer oposição e/ou opinião divergente, empenhada em ações seletivas que buscavam preservar uma aparente normalidade institucional.

Julio relata que reuniões tinham que ser organizadas da maneira mais oculta possível, com normas de segurança a seguir. “Se marcávamos um encontro e depois de 15 minutos alguém não aparecia, muito provavelmente é porque havia sido preso. Daí todo mundo se dispersava, a reunião era cancelada e organizávamos o encontro para um outro dia.”

A primeira luta em que atuou com protagonismo foi à constituição do Comitê de Defesa dos Presos Políticos em 1974, organização gestada no movimento estudantil da USP. Ao integrar ativamente movimentos em resistência à ditadura, era inevitável que seu nome chamasse a atenção dos órgãos de repressão.

Prisões – no álbum do Dops (Departamento Especializada de Ordem e Política Social) Julio Turra Filho aparece fichado com o número 9939. Em 12 de julho de 1974 foi detido pelo órgão, cuja sede ficava no bairro da Luz, centro de São Paulo, juntamente com outros companheiros que eram lideranças do movimento estudantil. Questionado sobre sua participação na organização do Comitê de Defesa dos Presos Políticos, passou uma noite na carceragem do Dops e liberado no dia seguinte.

A partir de 75 participa da campanha para fundar o DCE (Diretório Central dos Estudantes) livre da USP. Em documento confidencial do Serviço Nacional de Informações datado de 2 de setembro de 1977, cujo assunto era professores e alunos esquerdistas da USP, Julio Turra é descrito como ‘comunista e tumultuador de aulas’.

Volta a ser detido em 77, mas sem provas é liberado. “Em uma das ocasiões fui preso enquanto colava um cartaz sobre uma festa comemorativa à Revolução dos Cravos – 24 de abril de 74 – dentro da USP, imaginando que a autonomia universitária seria respeitada. Parou um camburão e embarcou eu mais um companheiro chamado Piauí e fomos levados até o Dops tomando tapa na orelha”, descreve. “Vivíamos sob tensão. Havia um incentivo oficial a denúncia, a delação, um clima de guerra psicológica permanente”.

Apesar das divergências entre as organizações de esquerda, Julio destaca que havia uma enorme solidariedade em contraposição a um inimigo comum que era a brutalidade policial e repressiva da ditadura militar.

Espionagem – em função da Lei de Anistia, Julio solicitou ao arquivo nacional os resumos de dossiês do Conselho Nacional de Segurança Nacional (CSN), da Comissão Geral de Investigações (CGI) e do Serviço Nacional de Informações (SNI) nos quais seu nome é citado.

Para sua surpresa, tais documentos oficiais revelam um forte esquema de espionagem e um nível extremo de controle e informações sobre as atividades das organizações na qual militava.

“Tinham até as cédulas de votação de congressos clandestinos da minha organização”, resume. “Na época a gente lia muito um livrinho chamado ‘O que todo revolucionário deve saber sobre a repressão’ (Victor Serge) sobre a experiência da revolução russa, em que haviam provocadores infiltrados no alto comando dos bolcheviques e Lenin dizia que para ser um bom agente infiltrado teria que cumprir bem as tarefas. Então, de certa maneira, este agente ajudou a fazer a revolução. Portanto, era inevitável a infiltração da polícia, mas quando a gente identificava alguém procurava excluí-lo de informações que pudessem ser perigosas para a nossa segurança”, assinala.

Retomada do protagonismo – segundo Julio, um dos momentos que mais lhe marcou foi o assassinato de Alexandre Vannuchi Leme, também estudante da USP.

Preso no dia 16 de março de 1973, foi torturado até sua morte nas dependências do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna), órgão subordinado ao Exército e criado para combater os opositores do regime militar.

Seu corpo foi jogado numa vala comum no Cemitério de Perus e coberto com cal para apagar rapidamente os vestígios da tortura. Os órgãos de repressão chegaram a apresentar três versões diferentes para a sua morte.

À época, outros estudantes da USP também tinham sido presos. Houve uma grande mobilização nos centros acadêmicos como forma de repúdio aos desaparecimentos e na busca sobre a verdadeira causa da morte de Alexandre. Os estudantes se organizaram, paralisaram aulas e fizeram greves. Mas o grande momento foi à realização de uma missa celebrada pelo cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, no dia 30 de março, reunindo mais de três mil pessoas na Praça da Sé.

Para Julio, “as primeiras manifestações, diga-se de passagem, ainda silenciosas, como a missa na Praça da Sé, já sinalizavam a tendência do movimento estudantil em retomar o protagonismo. Foi um ato de ousadia, uma manifestação reunindo milhares em São Paulo, mas de grande repercussão e que causou uma racha na repressão.”

As grandes passeatas estudantis começaram a pipocar pelo País a partir de 76/77, sempre acompanhadas da repressão e violência policial. Já fichado nos órgãos de controle, o líder CUTista ficava geralmente no comando durante as passeatas. “Os companheiros e companheiras levavam para as atividades fichas de telefone no bolso, ligavam a cada cinco minutos para a gente no comando para saber das orientações sobre a localização da polícia a partir de informações que nós ouvíamos pelo rádio”, lembra.

O rádio era a única fonte de informação e isso acabou gerando alguns equívocos, como orientações para locais onde havia presença do aparato repressivo. “Eu mesmo cheguei a fazer isso. Infelizmente, eram essas as condições na época”, salienta.

Ingresso no movimento operário – ao contrário do movimento estudantil que possuía certa margem de manobra, não havia qualquer abertura ao movimento operário durante o período ditatorial.

Em sua essência, o golpe foi anti-operário e anti-camponês. Centenas de entidades sindicais sofreram intervenção, com sindicalistas combativos, de diretorias democraticamente eleitas, substituídos por interventores do Ministério do Trabalho, quando não assassinados.

Julio Turra começou a ter contato com o movimento operário a partir da organização na qual militava. Era época da construção das oposições sindicais que questionavam não só o pelego de plantão, mas também a própria estrutura sindical atrelada ao Estado. “E junto com algumas diretorias sindicais mais combativas que escapavam do padrão do peleguismo oficial da ditadura, notadamente o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, uma série de articulações começaram a ser feitas”, atenta.

Para Julio, o movimento operário começa a adquirir protagonismo nos anos 77/78, quando Delfim Netto, ministro da Economia da ditadura, é desmascarado numa manipulação de índices de inflação e de reajuste de salários. “Os sindicatos denunciaram e isso criou o caldo de cultura para a realização das greves iniciadas em 1978 na Scania, que se espalharam por todas as montadoras do ABC e posteriormente por todo o Brasil. Essa onda de greves de massa vai estar na origem do PT e da CUT”, acrescenta.

Já havia uma divisão no movimento operário entre o bloco que queria preservar a estrutura sindical e o bloco combativo, que ficaria ainda mais evidente a partir da Conclat (Conferência da Classe Trabalhadora)da Praia Grande em 81. “E o novo sindicalismo acabou bancando a construção da CUT. Era um período de maior abertura, embora ainda houvesse espionagem, agentes infiltrados”, relata.

Muro de silêncio – o Brasil viveu uma transição conservadora. A ‘Campanha das Diretas Já’ pereceu no Congresso Nacional e a transição democrática foi institucionalizada a partir do colégio eleitoral.

A dobradinha Tancredo/Sarney teve aceitação dos militares por tratar-se de personagens moderados que não iriam investigar e/ou apurar os fatos ocorridos no passado. “Conseguimos alguns avanços graças à pressão popular, mas o quadro institucional no seu conjunto manteve todos os privilégios da elite e uma espécie de muro de silêncio sobre o que os militares fizeram na ditadura, tanto no plano dos direitos humanos como no plano da corrupção”, alerta Julio Turra.

Em relação à Comissão Nacional da Verdade (CNV), o dirigente da CUT avalia como limitada do ponto de vista institucional, já que não possui autonomia e poder de punir os responsáveis pelos crimes na ditadura. “Mas a CUT e as outras centrais decidiram constituir um Grupo dos Trabalhadores da CNV que exige reparação, punição dos responsáveis, tem uma pauta bastante avançada que é inclusive punir os empresários que tiveram participação na repressão. Até onde a responsabilidade jurídica sobre eles vai poder ser aplicada, veremos.”

Há cerca de cinco anos, Julio Turra entrou com o processo de Anistia reivindicando reparação e indenização por danos materiais. Professor, sofreu perseguição política e foi incluído na ‘lista negra’. Por esses fatores, empresas e instituições públicas não o contratavam.