Dirigentes de movimentos sociais avaliam o ano de 2008 e apontam as perspectivas dos desdobramentos da crise em 2009


Entrevista originalmente publicada na Agência Carta Maior

Se 2008 foi o ano em que a crise financeira foi deflagrada internacionalmente, o que esperar de 2009? Recrudescimento ou superação desse quadro? Com questionamentos nesse sentido, alguns dirigentes de movimentos sociais falam o que  este campo espera de 2009. Também foram perguntados sobre como a crise financeira pode levar os ideais socialistas novamente a uma posição de destaque no cenário internacional. De um lado, os entrevistados apontaram pessimismo com relação às condições objetivas que são vislumbradas, com desemprego e recessão. No entanto, no aspecto mais subjetivo, acredita-se que os valores clássicos da esquerda socialista podem surgir com uma força inédita desde a queda do Muro de Berlim.

Foram feitas quatro perguntas iguais para os entrevistados. São elas:

Quais foram os principais momentos de 2008 para a luta social e quais são os principais avanços conquistados pela esquerda brasileira no período?

E os principais retrocessos?

Como o campo da esquerda deve se posicionar para não atravessar a crise de maneira passiva?

A esquerda pode tirar proveito da crise? Como?

Artur Henrique, eletricitário, presidente da Central Única dos Trabalhadores

Nossa agenda de lutas continua, em seu núcleo, a mesma. Isso porque, infelizmente, há muitas injustiças sociais. Reforma agrária, pleno emprego, acesso à moradia, melhores condições de vida para os aposentados, tudo isso continua como meta. Porém, a conjuntura traz elementos novos. Um deles foi a forte alta de preços que nos atingiu a partir do segundo trimestre, que na verdade era já mais um prenúncio da crise financeira que viria depois e que se tornaria o segundo maior desafio dos movimentos sociais. Durante o ataque especulativo forte e concentrado aos alimentos que provocou a pressão inflacionária, nosso papel era o de impedir a corrosão do poder de compras dos salários, o que fizemos com a manutenção das campanhas salariais agressivas, e também barrar o discurso conservador, que chegou a usar argumentos como o de que reajustes salariais estimulavam a inflação e de que, por causa da pressão sindical, a catástrofe seria a maior jamais vista.

Nossas campanhas salariais foram mantidas e lutamos como pudemos contra o discurso conservador. Acredito que tivemos avanços nos dois campos. O outro momento importante e desafiador é o que vivemos agora. A crise financeira internacional bate às nossas portas, já dá sinais de contaminação na economia real, e os setores conservadores aproveitam para voltar a pregar flexibilização de direitos, suspensão de contratos, quebra da legislação e outras ameaças à classe trabalhadora. Esta briga, ou melhor, este episódio mais recente da briga, está no início. Fizemos e entregamos propostas consistentes ao governo, fomos atendidos em algumas, porém com uma lacuna imperdoável, a nosso ver, que é a não explicitação de regras formais e as penalidades correspondentes para manutenção dos empregos. O que estamos fazendo agora é organizar as bases de forma a realizar greves e mobilizações em todos os setores, para defender empregos e salários. Temos, de um lado, de dialogar com a sociedade e fazer o discurso contrário ao da grande mídia, que dá como inevitável e natural as demissões, e, de outro, especialmente lutar com empresas e segmentos que, apesar de toda a ajuda da sociedade brasileira, seja através de empréstimos oficiais a juros subsidiados, deduções fiscais, socorros governamentais ou trabalho diário de cada brasileiro e brasileira, insistirem em demitir. Vai ter greve e luta.

Eu quero dizer que o maior retrocesso continua sendo a política de juros básicos altíssimos praticada no Brasil.

O que eu disse antes dá uma idéia do que acreditamos necessário fazer. Vamos nos mobilizar, fazer passeatas, greves, panfletagens, mostrar à sociedade que a saída é o emprego e o salário, e somar forças para combater mais esse ataque conservador.
 
Enquanto fazemos esta entrevista [em 15 de dezembro], os movimentos sociais latino-americanos estão realizando a Cúpula dos Povos, na Bahia. Estamos aqui discutindo como ocupar espaço através da integração de nossos povos e da construção de novos instrumentos, como mecanismos de fomento regional, para ganhar mais trincheiras contra essa hegemonia carcomida dos Estados Unidos e dos países capitalistas centrais. Temos de dialogar com a sociedade através de informação e especialmente novas práticas, para que a crise sirva de caminho para a esquerda ganhar terreno. O caso desse encontro na Bahia é um dos exemplos, Temos de repetir essa luta em todos os lugares, em cada assembléia, em cada local de trabalho.

Marina dos Santos, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST)

Este foi um ano de grandes mobilizações por Reforma Agrária e Soberania Popular. Em março, por exemplo, as mulheres da Via Campesina de todo o país realizaram atos para mostrar à sociedade a existência de um projeto alternativo de agricultura, baseado na produção familiar para o mercado interno. Em abril, trabalhadores sem-terra lembraram os 12 anos do massacre de Eldorado dos Carajás e ocuparam ruas, prédios públicos e fazendas, para exigir Justiça e o assentamento das 140 mil famílias acampadas, além de investimentos públicos nos assentamentos já existentes. Em julho, a Jornada de Lutas por Reforma Agrária tornou a denunciar a lentidão no processo de criação de assentamentos, as promessas não cumpridas e a crescente prioridade do governo ao modelo do agronegócio. Em outubro, o Dia Nacional de Lutas em Defesa da Soberania Alimentar uniu a Via Campesina e a Assembléia Popular em protestos para denunciar a responsabilidade das empresas transnacionais da agricultura pela elevação dos preços dos alimentos. Apesar de poucos, contabilizamos avanços significativos, como a criação de um programa nacional de habitação rural – conquistado a partir de mobilizações de trabalhadoras e trabalhadores. Do ponto de vista do conjunto da esquerda, podemos destacar como avanços a vitória dos povos indígenas de Raposa Serra do Sol no STF e a greve nacional dos bancários, que uniu a classe e mostrou o poder transformador da mobilização popular.

A criminalização dos movimentos sociais e o aumento da truculência policial ganharam força com a ação nefasta de promotores do Ministério Público do Rio Grande do Sul, que elaboraram um relatório para "dissolver" o MST. Esse episódio é considerado um retrocesso não só para a esquerda, mas para a democracia como um todo. As eleições, certamente as mais despolitizadas do último período, representaram uma derrota para o país. Salvo pouquíssimas exceções, ninguém quis debater projetos de nação, apenas formas de perpetuação do modelo vigente.
 
A crise deve ser vista pela esquerda como uma possibilidade de mudança na política econômica neoliberal vigente, com a construção que medidas concretas para a melhoria das condições de vida do povo brasileiro, que garantam os direitos ao trabalho, saúde, educação, moradia digna, cultura e às reformas agrária e urbana. Por isso, deve seguir organizando a classe trabalhadora para que lute por transformações.

Lúcia Stumpf, universitária, é presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE)

Foi um ano de muitas conquistas, pela primeira vez conseguimos a ampliar a universidade, por meio do Reuni, que permite que a universidade pública seja repensada dentro dos seus muros, para discutir sua democracia e a autonomia e principalmente o seu financiamento. Foi um ano importante para os movimentos sociais, com a legalização das centrais sindicais criou-se uma unidade maior em torno delas, em defesa do salário mínimo e da redução da jornada de trabalho. Em termos econômicos, o ano foi positivo para o país que viu bons níveis de crescimento e a ampliação do poder de comprar do salário mínimo. Para os jovens, o principal avanço foi a realização da primeira conferência nacional de juventude, agregando movimentos de diversas características e conseguimos elencar o que a juventude brasileira tem como prioridade.

Eu acho que a grande derrota é o fato de não conseguirmos mudar a política macroeconômica. Observamos a manutenção do superávit, dos juros altos e do descontrole do fluxo cambial, o que contradiz o bom momento da economia brasileira. Por isso, pedimos a derrubada do Henrique Meirelles (presidente do Banco Central).

É necessário que os movimentos sociais se unifiquem em torno da defesa de uma política econômica capaz de criar desenvolvimento, que possa privilegiar os investimentos sociais em detrimento do setor financeiro. Isso será conquistado se conseguirmos transformar uma unidade política em unidade de luta, com mobilizações e passeatas que pressionem o governo a realizar essas políticas.

É muito difícil tirar proveito de uma crise. Acredito que o máximo que podemos fazer é mostrar que a saída para o Brasil é o investimento na população, fazendo com que o Brasil consiga se desenvolver de maneira autônoma. Nós temos que aproveitar o momento para fazer valer essa opinião. Não acho que se possa colher bons frutos de uma crise, porque se o Brasil sofre, os trabalhadores vão sofrer.